CORA CORALINA
Cora Coralina nasceu em 20 de agosto de 1889, na casa que pertencia à sua família há cerca de um século, e que se tornaria o museu que hoje reconta sua história. Filha do Desembargador Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto e Jacita Luiza do Couto Brandão, Cora, ou Ana Lins dos Guimarães Peixoto (seu nome de batismo), cursou apenas as primeiras letras com mestra Silvina e já aos 14 anos escreveu seus primeiros contos e poemas. "Tragédia na Roça" foi seu primeiro conto publicado. Em 1910 casou-se com o advogado Cantídio Tolentino Bretas e foi morar em Jabuticabal, interior de São Paulo, onde nasceram e foram criados seus seis filhos. Só voltou a viver em Goiás em 1956, mais de vinte anos depois de ficar viúva e já produzindo sua obra definitiva. O reencontro de Cora com a cidade e as histórias de sua formação alavancou seu espírito criativo. Cora Coralina faleceu em Goiânia, a 10 de abril de 1985. Logo após sua morte, seus amigos e parentes uniram-se para criar a Casa de Coralina, que mantém um museu com objetos da escritora. ANTIGUIDADES Quando eu era menina bem pequena, em nossa casa, certos dias da semana se fazia um bolo, assado na panela com um testo de borralho em cima. Era um bolo econômico, como tudo, antigamente. Pesado, grosso, pastoso. (Por sinal que muito ruim.) Eu era menina em crescimento. Gulosa, abria os olhos para aquele bolo que me parecia tão bom e tão gostoso. A gente mandona lá de casa cortava aquele bolo com importância. Com atenção. Seriamente. Eu presente. Com vontade de comer o bolo todo. Era só olhos e boca e desejo daquele bolo inteiro. Minha irmã mais velha governava. Regrava. Me dava uma fatia, tão fina, tão delgada... E fatias iguais às outras manas. E que ninguém pedisse mais ! E o bolo inteiro, quase intangível, se guardava bem guardado, com cuidado, num armário, alto, fechado, impossível. Era aquilo, uma coisa de respeito. Não pra ser comido assim, sem mais nem menos. Destinava-se às visitas da noite, certas ou imprevistas. Detestadas da meninada. Criança, no meu tempo de criança, não valia mesmo nada. A gente grande da casa usava e abusava de pretensos direitos de educação. Por dá-cá-aquela-palha, ralhos e beliscão. Palmatória e chineladas não faltavam. Quando não, sentada no canto de castigo fazendo trancinhas, amarrando abrolhos. "Tomando propósito". Expressão muito corrente e pedagógica. Aquela gente antiga, passadiça, era assim: severa, ralhadeira. Não poupava as crianças. Mas, as visitas... - Valha-me Deus !... As visitas... Como eram queridas, recebidas, estimadas, conceituadas, agradadas ! Era gente superenjoada. Solene, empertigada. De velhas conversas que davam sono. Antiguidades... Até os nomes, que não se percam: D. Aninha com Seu Quinquim. D. Milécia, sempre às voltas com receitas de bolo, assuntos de licores e pudins. D. Benedita com sua filha Lili. D. Benedita - alta, magrinha. Lili - baixota, gordinha. Puxava de uma perna e fazia crochê. E, diziam dela línguas viperinas: "- Lili é a bengala de D. Benedita". Mestre Quina, D. Luisalves, Saninha de Bili, Sá Mônica. Gente do Cônego, Padre Pio. D. Joaquina Amâncio... Dessa então me lembro bem. Era amiga do peito de minha bisavó. Aparecia em nossa casa quando o relógio dos frades tinha já marcado 9 horas e a corneta do quartel, tocado silêncio. E só se ia quando o galo cantava. O pessoal da casa, como era de bom-tom, se revezava fazendo sala. Rendidos de sono, davam o fora. No fim, só ficava mesmo, firme, minha bisavó. D. Joaquina era uma velha grossa, rombuda, aparatosa. Esquisita. Demorona. Cega de um olho. Gostava de flores e de vestido novo. Tinha seu dinheiro de contado. Grossas contas de ouro no pescoço. Anéis pelos dedos. Bichas nas orelhas. Pitava na palha. Cheirava rapé. E era de Paracatu. O sobrinho que a acompanhava, enquanto a tia conversava contando "causos" infindáveis, dormia estirado no banco da varanda. Eu fazia força de ficar acordada esperando a descida certa do bolo encerrado no armário alto. E quando este aparecia, vencida pelo sono já dormia. E sonhava com o imenso armário cheio de grandes bolos ao meu alcance. De manhã cedo quando acordava, estremunhada, com a boca amarga, - ai de mim - via com tristeza, sobre a mesa: xícaras sujas de café, pontas queimadas de cigarro. O prato vazio, onde esteve o bolo, e um cheiro enjoado de rapé. Autora: Cora Coralina www.velhosamigos.com.br |
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